top of page
Buscar
  • fernanda cruz de aragao coelho

Luto, infância e a potência das narrativas

Atualizado: 21 de jan.

Por uma política da memória


Luto, infância e a potência das narrativas


Fernanda Cruz de Aragão Coelho*



Mamãe disse que papai foi para o céu.

Eu só não entendia por que ele teria ido lá pra cima, tão longe, sem se despedir de mim. **


Para a Psicanálise, não há um significante que represente a morte no Inconsciente. Portanto, nunca teremos um “saber” sobre ela; com exceção das crianças, em seus jogos simbólicos, ninguém morre e desmorre para contar como é e assim, produzir um registro.

Por essa razão, todo adulto é infantil diante da morte e todo encontro com a morte impõe algo de inédito, uma forçada reordenação narcísica. Freud assinala em alguns de seus textos seminais - “O ego e o Id”, “Luto e Melancolia” e “Sobre o Narcisismo”- o repudio que temos para tratar da morte, ao mesmo tempo em que nos põe de frente para ele. No entanto, é preciso que não saibamos da morte para viver.

Já faz tempo que a finitude não tem lugar na marcha da cultura e falar de morte relacionada à infância moderna ocidental é assunto tabu. Com o recrudescimento do discurso da ciência pela higienização das dores naturais da vida, o trabalho/experiência de luto foi silenciado e tomado como algo “patologizável”, codificado muitas vezes como um transtorno pelos manuais de saúde mental vigentes e com data regular para ser resolvido.

Entretanto, o fato de não haver inscrição no inconsciente sobre a morte não impede que se construam representações ligadas à perda, pois o que se inscreve no psiquismo é o que resta da experiência do vivido.

Aqui cabem pequenas distinções entre CONHECIMENTO, SABER E VERDADE: O conhecimento está ligado ao imaginário, de um material que vem de fora. O saber se relaciona ao simbólico; é o que se faz com a verdade e com o conhecimento. Já a verdade, advém do real e que não pode ser toda dita. É um vazio que não pode ser todo preenchido.


Numa noite, antes de dormir, fechei os olhos e, no meu pensamento, pedi que papai voltasse logo do céu. Se ele me amasse, conseguiria ler a minha mente. Será que ele me ouve? Será que ele me vê? O que tanto ele faz por lá?

PRECISO SABER.

Será que, quando ele voltar, uma surpresa eu vou ter?

Um filhote de cometa? Pó de estrelas? Nuvens de algodão? Ou um saco de chuva com trovão? Mas na verdade, eu bem queria era voltar a pegar na sua mão. **


Falar de morte para uma criança é um gesto político e requer acolhimento, coerência, confiança e respeito. É bem difícil acatar a ideia de que uma criança possa sofrer. Portanto, a fantasia de querer protegê-la é inevitável e leva alguns adultos a optarem por pactos de silêncio, encobrimentos ou partirem para construir ficções muito difíceis de serem sustentadas, pois crianças entendem tanto de morte como entendem de astronomia, de sementinhas, de Papai do Céu...


Mamãe disse que papai virou uma estrelinha. Papai virou uma estrelinha? **


Por que é tão difícil falar de morte para uma criança? Porque a criança atualiza tudo o que nós, adultos, já recalcamos de nossas experiências mais arcaicas. Revivemos algo que é da ordem do desamparo, do vazio do qual viemos e de uma brutal debilidade humana de não poder perder o que foi perdido sem dor. Somos seres de linguagem, os únicos bichos a temer a natureza.

Quando comunicamos às crianças da morte, estamos não só informando que fulano morreu e sim, lhes apontando algo de uma verdade inexorável sobre a vida: O FATO DE QUE SOMOS FINITOS.

Para uma criança, o desaparecimento de um Outro encarnado, é vivido como desamparo e comunicar isso é de certa forma, lançá-la nessa condição (de vazio - vivido como desamparo). Não existe um jeito mais certo, maneira correta de dizer, mas pode existir a pior. E podemos testemunhar que o mais traumático é “não saber” sobre algo importante de sua história. Na maioria das vezes, elas já sabem, porém, ainda assim, precisam dos ritos de palavra.


Ouvia mamãe chorando baixinho. Por que chorava?

Tinha algo estranho na conversa dos adultos. Diziam coisas que me deixavam confuso.

Por que será que alguns adultos pensam que não entendemos as coisas? **


Cabe ressaltar que não estamos falando apenas do evento morte, e sim, das intangíveis experiências de “mortes simbólicas” (perdas, mudanças, separações) às quais, como humanos que somos, as experimentamos desde os primórdios da nossa existência.

Nas crises humanitárias, guerras, desastres, emergências sanitárias, as crianças são mais vulneráveis, pela fragilidade de seus corpos de carne e de seus corpos psíquicos. Entretanto, mesmo nas piores circunstancias, não deixam de brincar, de sorrir, de serem “crianças”. Elas não reconhecem o perigo, não têm medo da morte. O que elas temem é de ficarem sós, de serem abandonadas. Não podemos nos furtar de mencionar neste palco de fala que convoca a refletir sobre nosso compromisso ético, das crianças em condição de orfandade ocasionada pela pandemia de COVID 19 e da ausência de políticas públicas que as contemplem de forma legítima.

Lembremos que, desde os tempos mais remotos até hoje, os Contos de Fadas são o testemunho de como precisamos das histórias para nos alimentar subjetivamente e construir repertório simbólico. Inventando histórias, damos uma face para o medo, para angústia, transformando-os em monstros, em vilões, em bruxas. Como diz Rubem Alves, “é sempre mais fácil falar sobre si mesmo fazendo de conta que se está falando sobre flores, sapos, elefantes, patos...”

O livro ilustrado “Preciso Saber” nasceu de narrativas orais trazidas pelas crianças pequenas, ou pelas que moram nos adultos, que tiveram a experiência e suas consequências, de ter provado das asperezas da vida num tempo muito precoce de suas existências.

O fio narrativo do texto, embora infantil, é endereçado para esses adultos, ou melhor, sendo mais ambicioso, um texto que alcance o infantil que habita esse adulto, muitas vezes também em estado de luto. E cabe perguntar de qual criança estamos falando, ou a quem queremos proteger, pois quando um adulto fica embaraçado para tratar do tema “morte” ou qualquer outro assunto, deve-se interrogar aonde esse fato o atualiza em sua realidade psíquica, em sua própria história, em sua infância, em seus próprios processos de luto.

Um escritor é aquele que captura o real do mundo e o transforma em código aberto, onde nada é e tudo pode ser. Cada um traz em seu arcabouço memórias, histórias de vida, tesouros biográficos que potencializam o encontro com o outro. Somos lidos enquanto lemos, construímos nossas narrativas ao mesmo tempo em que elas nos constroem num eterno vir a ser.

Não por acaso escrito em primeira pessoa, a narrativa nos convoca a revisitar afetos e memórias, a aprender com as crianças e a honrá-las. Pela função simbólica da palavra, podemos ajudá-las a construir a rede significante para bordear a bruteza da vida, sem tirar-lhes o direito de saber sobre sua história. Informar é diferente de narrar; narrar é incluir-se e incluir o outro; é dar espaço para todas as perguntas e poder suportar não ter todas as respostas, é ajudar a construir suas próprias versões de história, pois luto não é um evento, é um processo que não tem fim.


Sem disfarçar ela chorou e me contou que papai morreu. E eu pude chorar também. Meu pai agora era aquela estrela cintilante que brilhava do céu para mim. **


O livro foi escrito e ilustrado da maneira como as crianças olham para o mundo: com curiosidade e livre imaginação. Nesta prosa intertextual, há o desejo de acessar a potência criadora da fantasia e da linguagem simbólica que dá vida à narrativa deste livro-objeto, desconstruindo a ideia de que é um “livrinho para criança”.

Preciso Saber é endereçado para a INFÂNCIA, para infância do outro, que pode ter qualquer idade e traz o convite para uma experiência de leitura em estado de infância, onde os leitores se permitam ser tocados pelo sensível, atravessados pela experiência estética de sair da linearidade e da logicidade, para entrarem num universo de composição visual desperto pela tridimensionalidade dos origamis, a fluidez das aquarelas e um bocadinho de palavras.

Esperamos que o nosso trabalho deixe a desejar.



*Psicóloga, psicanalista, artista visual. Autora e ilustradora de Preciso Saber (Ed. Expressão Gráfica, 2022)

** Trechos extraídos do mencionado livro



5 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

A primeira casa

“A mulher é a primeira casa de todo e qualquer sujeito". Entretanto, a maternidade não está atrelada à capacidade biológica da mulher de gestar. É preciso, ainda, questionarmos o "mito do amor materno

bottom of page