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  • fernanda cruz de aragao coelho

Sonhei com uma história

Atualizado: 10 de set. de 2023

Numa noite, sonhei com uma história: começo, meio e fim. E num átimo, com habilidade de pensar por imagens (eu sonho acordada também), apressei-me em transcrevê-la: escrevendo imagens e pintando palavras, afinal, não é toda hora que o Anjo da Criação vem nos visitar!

Mas “fazer livro” é uma gestação, um lugar onde nada é e tudo pode ser.

Ter algo para dizer, é bem diferente de ter que dizer algo. Movida pelo desejo de me expressar, parti de um lugar muito intuitivo, nascedouro de uma nova paixão. E como não se faz nada sozinho, o convite aceito sem muito pensar, por parte da Iana veio selar a viagem sem volta para este universo de composição visual e sensória: os livros ilustrados.

“PRECISO SABER” é uma história para crianças de todas as idades que fala sobre vida, sobre acolhimento, sobre afetos, sobre a transitoriedade da nossa existência e sobre o que não morre jamais.

Quando a escrevi, não fazia a menor ideia do que estava por vir do nada aprazível ano de 2020. Falar sobre a morte (as reais e as simbólicas) seria algo tão necessário, pois passaríamos a experimentá-la de uma maneira impensável. Falo das consequências da pandemia para as crianças e adolescentes, que dentre todos, foram os que mais perderam: perderam pais, avós, familiares e foram privados da vida escolar, das trocas sociais e de toda uma rede significante tão necessária para o desenvolvimento psicossocial destes.

Quero crer que este tema foi soprado pelo “Espírito do tempo”. Com a licença poética que me cabe, lembro o que Freud disse dos poetas e por extensão, dos artistas: que esses estão sempre um passo à frente do seu tempo, servindo como um farol para a cultura.

Nas crises humanitárias, guerras, desastres, emergências sanitárias, as crianças são mais vulneráveis por sua fragilidade física e emocional; entretanto, mesmo nas piores circunstancias, não deixam de brincar, de sorrir... de ser “CRIANÇAS”. Elas não reconhecem o perigo, não têm medo da morte. O que elas temem é de ficarem sós.

Já que a morte é pra quem permanece vivo, isto implica, no mínimo, uma convocação para estarmos à altura do trabalho de cuidar, de todas as formas, de nossas crianças e adolescentes. Por certo, a arte e a literatura são boas ferramentas para este trabalho!

Este Livro nasceu das narrativas orais trazidas pelas crianças pequenas, ou pelas que moram nos adultos, que tiveram a experiência (e suas consequências) de ter provado das asperezas da vida e precisaram criar saídas diante da perda de alguém afetivamente importante.

Sabemos que não há inscrição da morte no aparelho psíquico, portanto, não temos um “saber” sobre ela; ninguém morre e desmorre. (SÓ AS CRIANÇAS) Por esta razão, todo adulto é infantil diante da morte.

Falar de morte para uma criança requer acolhimento, delicadeza, coerência, confiança e respeito. É bem difícil acatar a ideia de uma criança sofrer. Portanto, a fantasia de querer protegê-la é inevitável.

E por que é tão difícil falar de morte para uma criança? Porque a criança atualiza tudo o que nós, adultos, já recalcamos. Revivemos algo que é da ordem do desamparo, do vazio do qual viemos e de uma brutal debilidade humana de não poder perder o que foi perdido sem dor. Somos seres de linguagem, os únicos animais a temer a natureza.

Com o argumento, a princípio bastante compreensível, de proteger ou de subestimar a capacidade de compreensão das crianças, alguns adultos optam pelo caminho do encobrimento, da omissão da verdade, ou de construir uma ficção muito difícil de ser sustentada. Saibam: crianças entendem tanto da morte como entendem de astronomia, de sementinhas, de Papai do Céu...

Muitos buscam um psicólogo nessa hora, no intuito de que este “prepare a criança” ou que seja porta-voz dessa comunicação ou, ao menos, diga “como dizer”.

Pois que fique dito: Não existe um jeito mais certo, maneira correta de dizer, mas pode existir a pior. E podemos testemunhar que a pior forma de comunicar algo é pela omissão, pela inverdade, pelo não dito, pela higienização das dores naturais da vida, e a morte faz parte dela. Calar e ocultar é, muitas vezes subestimar a inteligência, ignorar o espírito investigativo das crianças, pois nada passa despercebido aos seus olhos; quanto menor ela for, mais perceptiva será com as mudanças em seu ambiente.

Não estamos falando apenas do evento morte, e sim, das intangíveis experiências “mortes simbólicas” (perdas, mudanças, separações), às quais, como humanos que somos, as experimentamos desde os primórdios da nossa existência.

Não me furtarei de lembrar que, desde os tempos mais remotos até hoje, os Contos de Fadas são o testemunho de como precisamos das estórias para nos alimentar subjetivamente e construir repertório simbólico. Inventando histórias, damos uma face para o medo, para angústia, transformando-os em monstros, em vilões, em bruxas. Lembrando Rubem Alves, “É sempre mais fácil falar sobre si mesmo fazendo de conta que se está falando sobre flores, sapos, elefantes, patos... ”

Para esta história, O fio narrativo e mobilizador de desejo em escrever sobre o tema era de trazer algo para os adultos que cercam as crianças. Como é difícil para alguns tratarem do assunto...

O texto, embora infantil, é endereçado para esses adultos, ou melhor, sendo mais ambicioso, um texto que alcance o infantil que habita esse adulto, muitas vezes também em estado de luto. E cabe perguntar de qual criança estamos falando, ou a quem queremos proteger, pois quando um adulto fica embaraçado para tratar do tema “morte” ou qualquer outro assunto, deve-se interrogar aonde esse fato o atualiza em sua realidade psíquica, em sua própria história, em sua própria infância, em seus próprios processos de luto.

Um escritor é aquele que captura o real do mundo e o transforma em código aberto, sem precisar fazer sentido, pois muito se perde do sentir quando se tenta dar sentido; somos lidos enquanto lemos, construímos nossas narrativas ao mesmo tempo em que elas nos constroem, num eterno vir a ser.

Não por acaso escrito em primeira pessoa, Preciso Saber nos convoca a revisitar nossos afetos e memórias, a aprender com as crianças e a honrá-las. Ajudá-las a construir uma narrativa para a bruteza da vida, sem tirar-lhes o direito de saber sobre sua história.

Informar é diferente de narrar; narrar é incluir-se e incluir o outro; é dar espaço para todas as perguntas e poder suportar não ter todas as respostas, é ajudar a construir sua própria versão de história, pois Luto não é um evento, é um processo que não tem fim.

Este livro, amigos, foi escrito e ilustrado da maneira como as crianças olham para o mundo: com curiosidade e livre imaginação. Através dele, eu e Iana expressamos nossa paixão pela arte e nesta prosa intertextual, desejamos acessar a potência criadora da fantasia e da linguagem simbólica que dá vida à narrativa deste livro-objeto, desconstruindo a ideia de que é um livrinho para criança; PRECISO SABER é endereçado para a INFÂNCIA, para infância do outro, que pode ter qualquer idade.

Hoje, neste dia tão simbólico, depois de dois anos de trabalho, com vocês aqui, que acreditaram em mim antes mesmo que eu acreditasse, não vou me atrever a citar nomes, mas sobretudo à Iana, que sem a aposta dela de acreditar no impossível junto comigo, nada disso existiria, quero convidá-los para uma experiência de leitura em estado de infância, para se deixarem ser tocados pelo sensível, atravessados pela experiência estética de sair da linearidade e da logicidade, para entrar num universo de composição visual desperto pela tridimensionalidade dos origamis e da fluidez das aquarelas.

Espero que o nosso trabalho deixe a desejar.


Meu Deus,

Me dá cinco anos.

Me dá alegria sã e medo remediável,

me dá a mão, me cura de ser grande.

Adélia Prado


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